Faz vibrar dentro do peito
Combinam-se e soam como um
Alinham-se e escrevem uma canção
Acorde
Acorde
Desentendimentos nos desvirtuam da evolução
Ocultando beleza e fúria. Esbanjando loucura e frieza. Caminhava por entre sombras, esgueirando-se por esquinas e becos, com a fantasia volúvel de encontrar alguém conhecido, naquele fim de mundo obscuro. Nenhuma palavra de verdade lhe dirigiam. Nada. Apenas palavras burocráticas, quase inaudíveis, que ele deduzia por leitura labial. Entrou, então, numa avenida grande, iluminada, cheia de letreiros expostos em prédios faraônicos que lhe ofuscavam qualquer coragem de expor-se. Olhou para baixo e seguiu rápido como boi açoitado. Com os passos nervosos e as mãos que não se encaixavam em si, ele sentia suores lhe percorrendo o corpo gelado.
Olhares de desdém, gestos de desconfiança, passos receosos, isto era tudo que ele recebia naquela infinita Avenida. Além de luzes fortes no rosto enrugado e perfumes azedos das madames. Chegaram a gritar algo ao longe, como, “será que ele não se enxerga?”... Mas Vidigal filtrava bem as palavras em seus ouvidos.
Próximo à cafeteria, numa esquina qualquer, um som metálico invadiu-lhe a cabeça. Mais parecia uma miragem de oásis a lhe inebriar a visão. Um homem estranho, sentado sobre caixas velhas entoava notas lustrosas num saxofone velho e fosco. Ninguém o via. Quase ninguém o ouvia. Apenas o velho Vidigal, o observava com introspecção. Cada nota mais estendida que o músico alçava no ar, era um prédio que desabava dentro de Vidigal, com fervor e fúria. Sentia tremer tudo e todos.
Aos poucos passou a bater com os pés na calçada, como que marcando o tempo correto dos compassos e sentiu vontade de sorrir. Mas aquilo pareceu-lhe ridículo, àquela altura dos acontecimentos.
De repente. uma brusca freiada de carro, retirou-lhe injustamente daquela condição etérea. Pneus cantaram de forma estridente. Não se seguiu batida ou acidente, mas somente um sobressalto que fez Vidigal pensar que o som lhe pudesse ser abafado para sempre. As notas permaneceram intactas, leves e cada vez mais altas. No volume e na audácia. Vidigal suspirou aliviado. A cidade aos poucos derretia e tudo era somente música, ritmo e poesia.
Quando deu por si, Vidigal já dançava, por entre os pedestres da calçada, abraçando postes e flutuando docemente, como um dançarino. Embriagado de alegria, inconsciente, cheio de vida.
Foi então que o músico cessou a magia. Desgrudou o saxofone dos lábios, ergueu os olhos para o chapéu, avistando míseras moedinhas ali lançadas pelos pedestres e encarou Vidigal por instantes. Vidigal que sapateava, congelou-se sorridente e ofegante e mirou o músico no fundo dos olhos cansados. O músico sorriu-lhe de volta e disparou um jazz, que navegou como míssil contra tudo a sua volta, fazendo Vidigal agitar-se como criança.
Enquanto tocava, o homem do saxofone teve a certeza de que mesmo sem audição e muito doente, o velho Vidigal ainda sabia reconhecê-lo, como um grande amigo de outros tempos.