quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Vidigal

Ocultando beleza e fúria. Esbanjando loucura e frieza. Caminhava por entre sombras, esgueirando-se por esquinas e becos, com a fantasia volúvel de encontrar alguém conhecido, naquele fim de mundo obscuro. Nenhuma palavra de verdade lhe dirigiam. Nada. Apenas palavras burocráticas, quase inaudíveis, que ele deduzia por leitura labial. Entrou, então, numa avenida grande, iluminada, cheia de letreiros expostos em prédios faraônicos que lhe ofuscavam qualquer coragem de expor-se. Olhou para baixo e seguiu rápido como boi açoitado. Com os passos nervosos e as mãos que não se encaixavam em si, ele sentia suores lhe percorrendo o corpo gelado.

Olhares de desdém, gestos de desconfiança, passos receosos, isto era tudo que ele recebia naquela infinita Avenida. Além de luzes fortes no rosto enrugado e perfumes azedos das madames. Chegaram a gritar algo ao longe, como, “será que ele não se enxerga?”... Mas Vidigal filtrava bem as palavras em seus ouvidos.

Próximo à cafeteria, numa esquina qualquer, um som metálico invadiu-lhe a cabeça. Mais parecia uma miragem de oásis a lhe inebriar a visão. Um homem estranho, sentado sobre caixas velhas entoava notas lustrosas num saxofone velho e fosco. Ninguém o via. Quase ninguém o ouvia. Apenas o velho Vidigal, o observava com introspecção. Cada nota mais estendida que o músico alçava no ar, era um prédio que desabava dentro de Vidigal, com fervor e fúria. Sentia tremer tudo e todos.

Aos poucos passou a bater com os pés na calçada, como que marcando o tempo correto dos compassos e sentiu vontade de sorrir. Mas aquilo pareceu-lhe ridículo, àquela altura dos acontecimentos.

De repente. uma brusca freiada de carro, retirou-lhe injustamente daquela condição etérea. Pneus cantaram de forma estridente. Não se seguiu batida ou acidente, mas somente um sobressalto que fez Vidigal pensar que o som lhe pudesse ser abafado para sempre. As notas permaneceram intactas, leves e cada vez mais altas. No volume e na audácia. Vidigal suspirou aliviado. A cidade aos poucos derretia e tudo era somente música, ritmo e poesia.

Quando deu por si, Vidigal já dançava, por entre os pedestres da calçada, abraçando postes e flutuando docemente, como um dançarino. Embriagado de alegria, inconsciente, cheio de vida.

Foi então que o músico cessou a magia. Desgrudou o saxofone dos lábios, ergueu os olhos para o chapéu, avistando míseras moedinhas ali lançadas pelos pedestres e encarou Vidigal por instantes. Vidigal que sapateava, congelou-se sorridente e ofegante e mirou o músico no fundo dos olhos cansados. O músico sorriu-lhe de volta e disparou um jazz, que navegou como míssil contra tudo a sua volta, fazendo Vidigal agitar-se como criança.

Enquanto tocava, o homem do saxofone teve a certeza de que mesmo sem audição e muito doente, o velho Vidigal ainda sabia reconhecê-lo, como um grande amigo de outros tempos.

4 comentários:

Carla disse...

...nem sempre a velhice chega e é vista com bons olhos , ao contrário,muitos tem preconceito,quando deveriam respeitá-la.Mas Vidigal nos mostra que nunca é tarde demais para sentirmos vida e apreciar os momentos como um reencontro ,a vibração de uma música e a amizade.
A vida é sempre boa para quem , apesar de tudo , sabe aproveitá-la!
Espero ter aprendido a lição!

Márcia disse...

Impactante ,Cri,primeiramente,a visão interior de um idoso com grandes limitações em relação ao mundo em movimento já quase inacessível a ele,e de repente,a vibração sonora do saxofone fazendo-o interagir com a realidade, apesar da surdez",ouvindo" com a alma a música que ele tanto ama no reencontro com seu amigo.Muito lindo.É isso mesmo, o ser humano consegue recursos inexplicáveis,muitas vezes,dependendo de uma motivação muito forte que nos faz agir.Lindo!
Beijo.
Mormina.

dfatori disse...

Esse texto pode ser lido ao som de Giant Steps.

Unknown disse...

Olá Cristiano, sabe que são poucos os homens q visitam meu blog. Queria te agradecer pela visita e pelo coment!

Beijão,
Julia Duarte
Relationchip