sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Quase-monólogo de botequim

A - Tenho 53 anos de vida. Já presenciei muita coisa neste país. Mas continua sempre tudo muito igual, a estrutura não muda. A mentalidade é sempre tacanha. Mudamos de presidente, mas a balela é sempre a mesma.

B – É verdade. A começar pelas conversas de boteco e de elevador.... (fala meio de lado)

A - Em 68, quando você nem era nascido, eu era adolescente e minha irmã era do movimento estudantil, esquerdista mesmo. Você acredita que, uma vez, quando ela estava grávida de 8 meses, participou de uma passeata na praça da República e me levou junto!

B – Que loucura!

A -Na verdade, foi o louco do namorado dela, hoje marido, que nos arrastou pra lá. Ele levou bolinhas de gude, para jogar no chão e derrubar os cavalos da polícia que vinham atrás de nós. Joguei várias bolinhas naquele dia..... Foi naquele dia que aprendi a odiar a polícia!

B - São mesmo uns animais esse policiais.... Abusam dos inocentes!! (esbraveja)

A – Pois é. E o mais irônico é que hoje eu sou polícia!

B – (silêncio constrangedor)

A - Mas eu sou escrivão, nunca fiz diligência na rua, não! Quer dizer, FUI escrivão, porque hoje em dia estou parado. Fui o melhor escrivão do Guarujá, meu amigo, datilografava 65 Cartas Precatórias por semana, tu tem idéia de quanto é isso? (Faz com a mão, para dar idéia de uma pilha do chão até sua cabeça) Pauleira mesmo, brother!

B – Então, quer dizer que você foi um funcionário exemplar na polícia ?

A - Eu era tão pauleira, que até contraí L.E.R. (lesão por esforço repetitivo) nas duas mãos. (diz com olhar grave, mostrando os dedos tortos das mãos). Depois disso, parei total.....

B - E por isso o senhor se afastou. E agora o que senhor pensa em fazer?

A – Em primeiro lugar, não me chame de senhor. Senhor pressupõe, por outro lado, vassalo, escravidão. Me trate por você!

B – Você é quem sabe....

A- Então. Hoje em dia faço porra nenhuma, irmão. Passeio só. E gastando o seu dinheiro de contribuinte otário (grita com o dedo em riste, apontando para o outro). E o seu também, (aponta para o garçom que ria debochadamente). E o de todo mundo aqui!!! (urra para o vazio, com olhar nervoso e sarcástico).

B – Quer dizer você se aposentou ganhando bem? Mamando nas tetas do Estado.....

A- Não, não.... Não me aposentei ainda. O pior é que os caras disseram que eu era imprescindível e me deram uma outra função, como auxiliar do assistente do aspone.... Sabe o que é Aspone? As iniciais de Assessor de Porra Nenhuma! Mas, que no fim das contas, era a função do office-boy: tirar xerox e buscar documentos. Fiquei puto, né? O quê que tu acha? Aí, não fui mais trabalhar e os caras continuam me pagando como se eu trabalhasse. Sou funcionário fantasma agora. (fala com ar blasé)

B - E você não tem vontade de fazer mais nada da vida? De voltar a produzir?

A - No começo, até tinha, meu. Vontade de conversar.

B – Sei...... É importante mesmo.

A - Como você pode perceber, meu rapaz, sou bom de papo, dou boa tarde à minhoca e boa noite ao criado mudo e por assim vai. Falo pelos cotovelos e com todo mundo. Quer dizer, falava, né? Depois do que me aconteceu mês passado, quase virei um sociopata maluco.

B - Com você? Não é possível ... O que te aconteceu?

A- Outro dia, peguei o ônibus para ir até a praia do Tombo. Tava descendo do busão, quando vi uma moça extremamente grávida, grávida para caramba, você não imagina o quanto. Parecia que ia explodir, sabe? Devia estar com uns 8 ou 9 meses. Aquela melancia na barriga.... Igual minha irmã, no dia dos policiais, sabe?

B – Claro, imagino...

A - Então, olhei para ela e com toda a cordialidade do mundo, falei “Bom parto, senhora!”. Sabe o que ela fez? Me olhou atravessado, com cara de ofendida e ainda disse “Senhora é a mãe!” Vê se pode rapá, que estupidez...

B - Acho que ela quis dizer que só vai virar senhora depois que for mãe.... Ou sei lá. Talvez não seja casada. Coisa de mulher... Idade incomoda, sabe?

A- Será que foi isso? Não, não é possível... Deve ter sido a palavra “parto”. Que lembra despedida, morte... Talvez ela tenha ficado constrangida.

B Ainda acho que ela não tenha gostado da palavra “Senhora”.

A – Quer saber? Deve ser o medo de se relacionar, medo de interagir, cara. As pessoas, hoje em dia não querem trocar idéias, só querem impor as suas. Ou não querem desenvolver opiniões, só querem comprá-las prontas nos jornais e na TV. E existem aqueles que parecem querer convencer aos outros o tempo todo, falam demais, como políticos, sabe? Isso também me incomoda. Você não imagina o quanto.

B – Posso calcular....

A - É por isso que estou vendendo tudo e vou me mudar para o meio-do-mato. Vou virar eremita. Não preciso conversar com mais ninguém, nem pagar IPTU, nem conta de gás, nem assistir TV, nem esperar abrir o semáforo, nem nada!! Só vou falar com os bichos, só vou escutar o que eles me dizem. Vou me entender tanto com ele, que vou virar bicho também.

B - Bicho somos nós que vivemos em São Paulo, bicho..... Quer dizer, amigo. Naquela cidade que é uma terra de ninguém. Um arcabouço de loucos, como diz um amigo meu, poeta.

A - O homem é um bicho, por natureza! (diz já com certa frouxeza na língua) - E se torna mais irracional por acreditar que não o é. Que é superior! Por ter a razão e o livre arbítrio.... Grandes merda.... Eu vou-me embora pro meio do mato! (Anuncia, com ar definitivo) - Quanto eu te devo? (pergunta ao garçom).

B- Não, não, não! Essa é por minha conta! Eu faço questão, pois foi um grande prazer te ouvir, ou melhor, te conhecer! (Joga umas moedas no balcão em pagamento pela bebida do outro)

A – Muita gentileza. Mas não vou aceitar. Odeio me sentir devedor. (joga outras moedas no balcão e se levanta). Vai saber? Hoje em dia, é todo mundo louco, é capaz de você querer me cobrar depois, me protestar, me executar, sei lá eu. Vejam esses caras brigando por um bilhete de loteria premiado ! Tudo começa com gentileza e termina com litígio, tô fora. A gente se vê! Se você for para o meio do mato também, é claro. (vai andando, num passo torto)

B – Boa sorte! (observa a saída do homem e diz, como que pensando alto) - Espero que nesse meio do mato, ele não arrume encrenca com nenhum bicho. Afinal, lá impera aquela tal seleção natural.....

3 comentários:

Ricardinho disse...

Cidão,
além de poeta concretista também tem seu lado veríssimo, retratando o cotidiano com humor, essa é o outro lado da fera

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Cris,

Estou impressionada com tamanha perspicacia! Ainda bem que existem pessoas que conseguem retratar o cotidiano com inteligencia e humor, caso contrario a vida nao passaria de monotonia e banalidade.
Parabens!